6.9.04

Sobre a Morte e a Vida



Tive dificuldades de contar para o Arthur, que está com 3 anos e ainda não sabia nada sobre a morte, que o seu avôzinho tinha ido. No dia em que recebi a notícia, não contei porque viajaria no dia seguinte para o funeral e só retornaria uns 15 dias depois. Fiquei com receio, não sabia qual seria a reação dele. Depois, na volta, estando muito mexido, não tive coragem. A viagem havia incluído compromissos de trabalho e eu só queria estar em casa, onde pudesse chorar em paz. Tive medo de desabar, ao abordar o assunto com ele.
Quase um mês depois, minha companheira e um amigo muito querido me deram ânimo e argumentos irrefutáveis para contar: a criança, não importa qual seja a idade, vai justamente começar elaborar seus conceitos sobre a morte, nessas circunstâncias. A relação do Arthur com meu pai foi muito especial, embora curta. Não contar seria protegê-lo do inevitável, de algo normal.
Naquela mesma noite tive um sonho com o meu pai. Ele abria a porta do quarto onde eu estava e me olhava. Mas os seus olhos lembravam o olhar da minha avó, a mãe do meu pai. Ela tinha sempre um olhar que enganchava as pessoas pela culpa.
É impressionante como na morte de alguém que amamos, algumas culpas aparecem: não ter feito tudo o que gostaríamos com aquela pessoa, conflitos, palavras duras. No meu caso, também, por não ter levado a sério aquela intuição que já vinha martelando. É como se a gente cobrasse uma infalibilidade impossível, nessas horas.
No sonho, eu me levantei e perguntei ao meu pai: - Mas pai, você não morreu? E ele deu um sorriso, apenas. Aquele sorriso bonito que era bem dele. Eu me arrepiei todo (e me arrepio ao escrever). Fui acordado pela minha companheira, por conta do ruído típico de quem está tendo um pesadelo. Fiquei acordado um tempo e o arrepio não passou de imediato...
Me caiu a ficha de que era como se meu pai estivesse dizendo: - Sim, eu morri, conta pro Arthur. Como se ele estivesse pedindo que eu desse um fechamento. Não contar, além de ser uma proteção desnecessária, era também a maneira de não admitir que, realmente, ele tinha ido. De manhã, quando desci para tomar sol com o Arthur, contei-lhe. Disse que o Bogô (Vô Gordo, na sua língua) tinha ficado muito doente e estando bem velhinho, havia morrido. Ele franziu a testa, abaixou a cabecinha e seguiu me ouvindo. De repente, me interrompeu e disse: - Eu não estou mais dodói, não é mesmo?
Disse-lhe que não, que já estava bom (ele teve febre muito alta, na mesma noite em recebi a notícia de que meu pai estava passando mal, mas que parecia não ser muito grave). Depois o Arthur perguntou: - Você está dodói? Eu respondi que não, e que também não estou velhinho.
- A mamãe também não está dodói, afirmou, dando a volta por cima...
Me lembrei da Pri, minha filha, hoje com 20 anos. Quando tinha cerca de 4 anos, um dia me colocou contra a parede: - Pai, é verdade que todo mundo morre um dia? Ao responder que sim, ela foi ficando preocupada e perguntou se um dia iria morrer, também. Confirmei, mas expliquei que normalmente as pessoas morrem quando ficam bem velhinhas. E ela retomou: - você e minha mãe também vão morrer? De novo disse que sim, mas que a gente ainda tinha muito tempo pela frente. Ela então chorou...
Senti que a conversa com o Arthur, repetiu as mesmas dúvidas da Pri. Primeiro o medo da própria morte, depois o medo da morte dos pais. Lembrei-me de que naquela hora, com a Pri, havia em sua dor um pedido para que eu não morresse jovem. Que eu não partisse antes de que ela fosse capaz de ir pro mundo, quando fosse mais suportável encarar a minha morte. E foi também o que senti, com as perguntas do Arthur. Entendi que quando a gente é pequeno - foi assim comigo também - uma das coisas que mais tememos é que nossos pais morram.
Então prometi, há uns 17 anos atrás, que vou me cuidar para não ir antes da velhice. Sei que a gente não tem controle sobre isso, mas é possível se cuidar, amar a vida. Não só pelo filhos, claro, mas também por nós mesmos.
Liguei pra Pri, depois do diálogo com o Arthur, e contei que eu havia renovado, através das perguntas que ele me fez, o meu compromisso em não deixar de gostar de viver. O mesmo compromisso que havia feito movido pelas perguntas dela. Quando desliguei o telefone, consegui terminar de chorar, um choro que não havia saído inteiro, quando fui ver o meu pai pela última vez.
Para o Arthur, disse ainda que, agora, a gente só vai poder lembrar do Bogô. Quando tivermos saudades veremos as suas fotos e o lembraremos com amor...
Ilou

2 comentários:

Décio disse...

É muito verdadeira esta ligação entre nosso compromisso com os filhos e o cuidado conosco. Conheço muita gente que, não fosse isso, teria se detonado.
O relato sobre a dor da perda do pai é muito comovente, lembrou-me bastante a "ida" de meu próprio. Um lindo texto.

Marina Schmidt disse...

Eu sempre soube que a morte existe, mas sempre me senti corajosa e eu achava que não tinha medo da morte. Segui assim, meio que alienada, e isso não me incomodava. Até que um dia, em abril do ano passado, o meu cachorro que me acompanhava há longos e doces 13 anos teve uma convulsão, ele teve que começar a tomar gardenal, mas as convulsões prosseguiram e eu comecei a sentir uma angústia muito forte. Claro que eu tinha medo que ele morresse, eu tinha um amor por ele como se ele fosse mesmo uma pessoa, e uma pessoa muito especial. Eu também tinha uma gata, nessa mesma época, e para vocês verem como meu cachorro era especial foi ele quem adotou essa gata e ela também estava conosco há muito tempo. Ela estava com uma ferida no nariz e nós achavámos que era consequência de brigas (coisas de gatos), mas a verdade era que aquilo era a consequencia da coisa que mais dava prazer à ela: o sol. Ela estava com câncer e nada podia ser feito.
Meus animais queridos iriam morrer em breve e eu sabia que não podia fazer nada, percebi-me impotente, indefesa, acuada. Comecei a pensar em no pai, na minha mãe, na minha vó e me senti vencida pelo medo, o medo, a essa altura, havia me dominado: o que eu faria quando a hora deles chegassem? Como vou sobreviver sem as pessoas que tanto amo?
Eu pensava mais na minha vó, que apesar de ser bem saudável tem mais idade e no meu pai, que não é tão saudável assim e não contribui muito com seus péssimos hábitos. Como eu os amo!
E para finalizar, houve um domingo em que eu recebi uma ligação de uma grande amiga minha, que já fazia certo tempo que eu não via e, claro, a notícia não era boa: uma amiga nossa estava no hospital, com morte cerebral, vítima de um atropelamento. Meu mundo desabou.
Em poucos minutos a morte devastou a vida de várias pessoas e detrui os sonhos de uma menina de 22 anos de idade. Percebi que realmente era impossível lutar contra essa força que virá para todos. Cair na realidade foi doloroso demais, achei que ia enloucer tentando prever situações, temendo cada momento, mas tudo isso é inútil e mesmo a morte vindo com tamanha voracidade, como vem, não foi a vencedora. A vida pôde superar a morte, a mãe desta minha amiga que morreu viveu um empasse maior, muito maior que o meu, ela tinha que permitir que desligassem os aparelhos e decidir se doava ou não os órgãos da filha. Que momento de dor incalculável deve ter tomado a alma dela, mas ela decidiu pelo o que certamente a filha dela decidiria: a doação. E a vida se renovou...
Ainda tenho muito o que aprender com a vida e com a morte e, principalmente, aprender a superar a dor, sei que vou sofrer e que meu mundo vai desabar ainda umas tantas vezes, mas enfrentar esse problema de frente é a única forma de superar a dor.
E quanto a minha gata e o meu cachorro, bom eles morreram, meu cachorro morreu um sábado antes do natal, morreu tranqüilo, e a minha gata não suportou a dor de viver sem seu eterno amigo e morreu dois dias depois...

O seu texto foi inesquecível, seus filhos devem se orgulhar muito de você. Eu queria que meu pai pensasse dessa mesma maneira, em se cuidar para preservar os filhos. O seu texto é uma linda lição de amor.